sexta-feira, 29 de abril de 2011

Isaiah Berlin


Os conceitos  e definições envolvidos nas disciplinas formais que têm regras relativamente claras - a física, a matemática, a gramática, ou a linguagem da diplomacia internacional - são comparativamente fáceis de investigar. Já com os conceitos envolvidos em atividades menos articuladas - nas atividades do músico, no escrever romances ou poesia, em pintura, formas de composição, no trato cotidiano dos seres humanos e no "senso comum" do mundo - as coisas se tornam, por razões óbvias, muito mais difíceis. É possível construir ciência sobre a presunção de certas invariedades relativas; nós presumimos que o comportamento das pedras ou da grama, ou das plantas ou borboletas, não terá em eras remotas, sido diferente a ponto de refutar as hipóteses de que hoje fazem a química ou a geologia, a física, a botânica ou a zoologia. A menos que acreditemos que os seres humanos sejam suficientemente semelhantes em certos aspectos básicos e suscetíveis de abstração ao longo de intervalos suficientemente extensos de tempo, não teríamos base para confiar nas generalizações que, conscientemente ou não, entram não só nas ciências proclamadas, como a sociologia, a psicologia e a antropologia, mas na história e na biologia e na arte do romancista, bem como na teoria política e em todas as formas de observação social.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

James Wood


O realismo, visto em termos amplos como veracidade em relação às coisas como são, não pode ser mera verossimilhança, não pode ser meramente parecido ou igual à vida; há de ser o que devo chamar de vida animada [lifeness]: a vida na página, a vida que ganha uma nova vida graças à mais elevada capacidade artística. E não pode ser um gênero; pelo contrário, ela faz com que as outras formas de ficção pareçam gêneros. Pois esse tipo de realismo - a vida animada - é a origem. é o mestre de todos os outros; ensina também os que cabulam suas aulas: é ele que permite existir o realismo mágico, o realismo histérico, a fantasia, a ficção científica, e mesmo o suspense. Nada tem daquela ingenuidade que lhe imputam os adversários; quase todos os grandes romances realistas do século XX também refletem sobre sua própria elaboração e estão repletos de artifícios. Todos os maiores realistas, de Austen a Alice Munro, são ao mesmo tempo grandes formalistas. Mas essa questão será sempre difícil: pois o escritor tem de agir como se os métodos literários disponíveis estivessem constantemente à beira de se transformar em meras convenções, e por isso ele precisa tentar vencer esse inevitável envelhecimento. O verdadeiro escritor, aquele livre servidor da vida, precisa sempre agir como se a vida fosse uma categoria mais além de qualquer coisa já captada pelo romance, como se a própria vida sempre estivesse à beira de se tornar convencional.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Isaiah Berlin

O sentido de realidade

Fichas ou diagramas médicos não são equivalentes ao retrato que um romancista talentoso ou um ser humano dotado de insight - compreensão - adequada pode formar; e não o são, em absoluto, porque necessitem de menos habilidade ou sejam menos valiosas para seus próprios propósitos, mas porque, ao confinarem-se aos fatos e generalizações publicamente registráveis por elas atestados, devem necessariamente deixar de lado uma vasta quantidade de pequenas cores, aromas e sons evanescentes em constante alteração, e os equivalentes psíquicos destes, as minúcias do comportamento, pensamento e sentimento meio observadas, meio inferidas, a um só tempo demasiado numerosas, demasiado complexas, demasiado delicadas e demasiado indiscrimináveis umas das outras para serem identificadas, nomeadas, ordenadas, registradas e enunciadas numa linguagem científica neutra. E mais do que isto, há entre estas minúcias certas qualidades padrão - e do que mais podemos chamá-las? -, hábitos de pensamento e emoção, modos de olhar, de reagir, de falar sobre experiências, próximos demais de nós para serem discriminados e classificados - dos quais não temos estritamente consciência como tal, mas que, entretanto, absorvemos em nossa visão do que está acontecendo, e quanto mais sensível e agudamente conscientes estivermos estivermos deles, mais compreensão e insight dir-se-á justamente que possuímos.

Em grande parte, é nisso que consiste compreender os seres humanos. Tentar analisar e descrever claramente o que acontece quando assim compreendemos é impossível, não porque o processo de algum modo "transcenda", ou esteja "além" da experiência normal, ou seja algum ato especial de adivinhação mágica não descritível na linguagem da experiência comum; mas pela razão oposta, de que entra intimamente demais demais em nossas experiências mais normais, e é uma espécie de integração automática de um grande número de dados, demasiado fugidios e vários para serem enquadrados na moldura de algum processo científico, um após o outro, num sentido óbvio demais, indiscutível demais para ser enumerável.

Katherine Mansfield

[...] Katherine Mansfield, uma escritora "laica" que olhava "para certeza exterior do mundo, para o turbilhão em fluxo contínuo da vida", intuindo, à semelhança de Tchékhov, que, "a beleza da vida estava justamente em sua aparência caleidoscópica". Numa carta de 1921, Katherine Mansfield expressou sua admiração por Tchékhov com as seguintes palavras: "O artista olha bem a vida. Diz submisso: 'Então é esta a vida, hein?'. E mete mãos à obra para exprimi-la".

sábado, 23 de abril de 2011

Edward Hopper


Para mim, a forma, a cor e a figura são principalmente meios para atingir determinado fim, as ferramentas que emprego no meu trabalho, e não me interessam em si próprias. A mim, interessa-me, em primeiro lugar, o vasto campo de experiências e dos sentimentos que não são objeto nem da literatura nem duma arte orientada meramente pelo artificial. [...] Quando estou a pintar, procuro sempre utilizar a natureza como meio, tentando fixar na tela as minhas reações mais íntimas ao objeto como aparece no momento em que mais gosto dele, quando os fatos correspondem aos meus interesses e idéias anteriores. Não posso dizer por que motivo gosto mais de escolher uns objetos do que outros, não sei mesmo especificar por quê, só posso dizer que penso que são o melhor meio para um resumo da minha experiência  interior.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Arthur Schopenhauer


A ausência de espírito assume todas as formas para se esconder: encobre-se com o estilo empolado, com o bombástico, com o tom de superioridade e de fidalguia e com centenas de outras formas: somente pela ingenuidade não se deixa atrair, pois, nesse caso, ficaria imediatamente despida e não poderia oferecer ao mercado nada além de uma mera simploriedade. Mesmo à boa cabeça não é permitido ser ingênuo, já que pareceria seca e magra. Eis a razão da ingenuidade continuar a ser a veste do gênio, assim como a nudez é a da beleza.

Rainer Maria Rilke

Cartas sobre Cézanne

Imagine, porém, o meu espanto quando a senhora V., com sua formação e olhar de pintora, disse: "Ele sentou aí na frente como um cão e simplesmente observou, sem estar nervoso e sem segundas intenções." E ainda disse muitas outras coisas sobre a sua maneira de trabalhar (que se vê em um quadro inacabado). "Aqui", disse ela, mostrando determinado ponto, é algo que ele soube" e agora diz (determinado ponto em uma maça), "ao lado está vazio porque ele ainda não sabia. Ele fez apenas o que sabia e nada mais". "Que boa consciência ele deve ter tido", disse eu. "Ah, sim: ele era feliz em algum lugar bem lá dentro..."

Anton Tchékhov

Eu acho que não são os escritores que devem resolver questões como Deus, o pessimismo, etc. O que cabe ao escritor é apenas representar quem, quando, em que circunstâncias falou ou pensou sobre Deus ou sobre o pessimismo. O artista não deve ser juiz de suas personagens e daquilo que dizem, mas tão-somente testemunha imparcial.  Houve dois russos falarem sobre o pessimismo, numa conversa sem nexo e que não chegava a nada. Devo transmitir essa conversa exatamente como a ouvi; a julgá-la serão os jurados, ou seja, os leitores. Meu papel é apenas o de ter talento, ou seja, de saber diferenciar os testemunhos importantes dos inúteis, de saber iluminar as personagens e falar a língua dela.
[...]
Já está na hora de as pessoas que escrevem, e principalmente os artistas, compenetrarem-se de que neste mundo não se compreende nada, como outrora reconheceu Sócrates e como Voltaire reconhecia. A turba acha que compreende tudo e que sabe tudo; e quanto mais estúpida ela é, mais amplo lhe parece o seu horizonte. Se um artista, em que a multidão acredita, tomar a decisão de declarar que ele não compreende nada do que vê, só isso já constituirá um grande saber no domínio do pensamento e um grande passo a frente.
[...]
O artista observa, escolhe, advinha, compõe - só essas operações já pressupõe, em sua origem, um problema; se o problema não foi colocado desde o início, não há o que adivinhar nem o que escolher.
Ao exigir de um artista uma atitude consciente para com o seu trabalho, você está certo, mas está misturando dois conceitos: a solução do problema e a colocação correta do problema. Só o segundo é obrigação do artista. Em Ana Karenina e no Oniéguin não há resolução de nenhum problema, mas estas obras são plenamente gratificantes, simplesmente porque, em ambas, os problemas foram colocados corretamente. Ao juiz cabe colocar corretamente a questão, os jurados que decidam, cada um ao seu modo.

Gustave Flaubert


Em tudo há o inexplorado, porque estamos acostumados a usar os olhos apenas como a lembrança daquilo que outros pensaram antes de nós sobre o que estamos contemplando. A mínima coisa contém uma ponta de desconhecido.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Sándor Márai


Mas tem que ser assim: só podemos compreender o essencial partindo dos detalhes, esta é a experiência que tirei tanto dos livros como da vida. É preciso conhecer todos os detalhes, porque nunca se pode saber qual será importante depois, e que palavras esclarecerão alguma coisa.

James Wood

Em 28 de março de 1941, Virgínia Woolf encheu os bolsos de pedras e entrou no rio Ouse. O marido, Leonard Woolf, era obsessivamente meticuloso, e manteve na vida adulta um diário no qual registrava todos os dias as refeições e a quilometragem do carro. Aparentemente não houve nenhuma diferença no dia em que sua mulher se suicidou: ele registrou a quilometragem do carro. Mas, diz a biógrafa Victoria Glendinning, a página dessa data está borrada, com "uma mancha amarela pardacenta que foi esfregada ou enxugada. Podia ser chá, café ou lágrimas. É o único borrão em todos os anos de um diário impecável".

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Isaiah Berlin

O sentido de realidade

Pode-se dizer que toda pessoa e toda era tenham dois níveis: uma superfície pública, iluminada, facilmente observada e claramente descritível, a partir da qual semelhanças podem ser proveitosamente abstraídas e condensadas em leis; e, abaixo desta, um caminho levando a características cada vez menos óbvias, ainda que mais e mais íntimas e difusas, demasiado proximamente misturadas a sentimentos e atividades para deles serem facilmente distinguíveis. Com muita paciência, indústria e assiduidade, podemos cavar abaixo da superfície - e romancistas o fazem melhor do que "cientístas sociais" treinados -, mas a consistência é a de uma substância viscosa: não encontramos quaisquer camadas pedregosas ou obstáculos insuperáveis, mas cada etapa é mais difícil, cada esforço para avançar nos rouba o desejo ou a capacidade de continuar. Tolstoi, Shakespeare, Dostoiévski, Kafka, Nietzsche,  penetraram mais profundamente do que John Buchan ou H.G. Wells, ou Bertrand Russell; mas o que sabemos sobre este nível de hábitos semi-articulados, presunções e modos de pensar não examinados, de reações semi-instintivas, modelos de vida tão profundamente embutidos que absolutamente não se fazem sentir conscientemente - o que sabemos sobre isto é tão pouco, e provavelmente permanecerá tão negligenciável, pois não dispomos de tempo, de sutileza e de penetração, que afirmar nossa capacidade de construir generazilações onde, no melhor dos casos, tudo o que podemos é nos entregar à arte de pintar finos retratos; afirmar a possibilidade de alguma chave científica infalível onde cada entidade única exige uma vida de observação minuciosa e dedicada, de simpatia e insight, é umas das afirmações mais grotescas jamais feita pelos seres humanos.