terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Honoré de Balzac


Outro estudo de mulher

Num dia bonito o senhor passeia por Paris. São mais de duas horas mas as cinco ainda não soaram. O senhor vê caminhando em sua direção uma mulher, o primeiro olhar lançado sobre ela é como o prefácio de um belo livro, ele lhe faz pressentir um mundo de coisas elegantes e finas. Como o botânico a atravessar os montes e vales arborizados, em meio às vulgaridades parisienses o senhor encontra por fim uma flor rara. Ou essa mulher está acompanhada por dois homens muito distintos, dos quais um pelo menos é condecorado, ou algum criado sem libré a segue a dez passos de distância. Ela não veste cores berrantes, nem meias que chamem a atenção, nem a fivela do seu cinto é muito trabalhada, nem tem calças de barras bordadas agitando-se em volta dos tornozelos. O senhor nota seus pés com botinas rendilhadas em seda que recobrem meias de algodão de uma finura extrema ou então meias de seda de cor cinzenta, ou ainda elas calçam borzeguins da mais requintada simplicidade. Um tecido deveras bonito e de preço medíocre chama sua atenção para o vestido, cujo modelo surpreende a mais de uma burguesa: é quase sempre um casaco três-quartos apertado por fitas e delicadamente bordado com uma presilha ou fio imperceptível. A desconhecida tem uma maneira toda sua de se enrolar num xale ou numa mantilha; ela sabe como prendê-los dos quadris ao pescoço, desenhado uma espécie de carapaça que transformaria uma burguesa numa tartaruga, mas sob a qual ela sugere as mais belas formas, ao escondê-las. De que maneira? Esse segredo guarda sem estar protegida por nenhuma patente de invenção. Entrega-se enquanto caminha a um certo movimento concêntrico e harmonioso que faz ondular sob o tecido sua forma suave ou perigosa, como a cobra ao meio-dia sob a gaze verde de sua erva fremente. Deve ela a um anjo ou a um demônio essa ondulação graciosa que se desenrola sob a longa capa de seda negra que agita a renda dos bordos disseminando no ar um bálsamo a que eu chamaria com satisfação de brisa da parisiense? O senhor reconhecerá nos braços, no busto, ao redor do pescoço, uma ciência das pregas que domina com arte o mais rebelde tecido de modo a lhe recordar a Mnemósine antiga. Ah, como ela domina, permita-me essa expressão, "o ritmo da caminhada!". Examine bem essa maneira de avançar o pé, moldando o vestido com uma precisão tão decente que desperta nos passantes uma admiração  mesclada de desejo, mas restringida por um profundo respeito. Quando uma inglesa tenta andar de tal modo, tem o ar de um granadeiro que avança para tomar uma fortificação. À mulher de Paris conceda-se o dom da caminhada. Por isso mesmo a munincipalidade lhe devia o asfalto das calçadas. Para passar, espera com sua orgulhosa modéstia  que lhe abram passagem. A distinção particular das mulheres bem-educadas se trai sobretudo na maneira como ela mantém o xale ou a mantilha cruzados sobre o peito. Possui enquanto caminha, um arzinho digno e sereno, como as madonas de Rafael em seus quadros.  Sua atitude, ao mesmo tempo tranquila e desdenhosa, obriga até o mais insolente dos dândis a lhe dar passagem. O chapéu, de uma simplicidade notável, possui fitas novas. Talvez tenha flores, mas os dos mais hábeis dessas mulheres têm apenas laços. A pluma exige a carruagem, as flores atraem mais o olhar. Sob essa cobertura vê-se a figura fresca e repousada  de uma mulher segura de si, sem fatuidade, que nada vê e tudo vê, cuja vaidade embotada por uma contínua satisfação expande sobre a sua fisionomia uma indiferença que desperta a curiosidade. Ela sabe que a estudam, sabe que quase todos, incluindo as mulheres, voltam-se para vê-la passar. Desse modo atravessa Paris como um fio da Virgem, branca e pura.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Rainer Maria Rilke


Cartas sobre Cézanne

[...] a natureza era para mim, então, um ensejo geral, uma evocação, um instrumento em cujas cordas minhas mãos se reconheciam; eu ainda não sentava diante dela; me deixava levar pela alma que dela emanava; ela incindia sobre mim com sua vastidão, com sua grande e exagerada existência, como o profetizar vinha a Saul; exatamente assim. Eu caminhava ao redor e via, mas não via a natureza, e sim a história que ela me inspirava. Teria aprendido muito pouco, naquela época, diante de Cézanne e Van Gogh. Por isso, por Cézanne ter tanto haver comigo agora, noto como me tornei diferente. Estou no caminho de me tornar um trabalhador, em um longo caminho talvez, e provavelmente nas primeiras milhas; mas, apesar disto, já posso compreender o velho homem que foi a algum lugar distante, lá na frente, sozinho, seguido apenas pelas crianças que lhe atiravam pedras.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Gustave Flaubert

Por que não se limitar ao objetivo que nos é dado? Ele vale por outro. Para tomar as coisas imparcialmente, há bem poucas maneias mais férteis. A inépcia consiste em querer concluir. [...]
Sim, a tolice consiste em querer concluir. Nós somos um fio e queremos saber a trama. É o que acontece com essas eternas discussões sobre a decadência da arte. Agora passa-se o tempo a dizer: "Nós estamos completamente liquidados, chegamos mesmo ao ponto final etc, etc. Qual é o espírito um pouco forte que tenha concluído. A começar por Homero? Limitemo-nos ao quadro; isto já está bom.

domingo, 19 de setembro de 2010

Anthony Giddens


A Constituição da Sociedade

Como todos os atores sociais vivem em contextos situados no interior de períodos mais vastos de tempo-espaço, o que é novidade para alguns desses atores não é para outros – incluindo, entre esses outros, os cientistas sociais. É, evidentemente, nessas “lacunas de informação” que a pesquisa etnográfica tem sua importância específica. Num sentido amplo do termo, esse gênero de pesquisa é explanatório, por quanto, serve para esclarecer enigmas apresentados quando indivíduos de um cenário cultural se encontram com os de outro que, em alguns aspectos, é muito diferente. A pergunta “Por que é que eles atuam (pensam) como atuam (pensam)?” é um convite para ingressar num milieu culturalmente estranho e compreendê-lo.

sábado, 18 de setembro de 2010

Gustave Flaubert


Trabalhe, medite, medite acima de tudo, condense seu pensamento, você sabe que os belos fragmentos não são nada. A unidade, a unidade, tudo está aí! O conjunto, eis o que falta a todos os de hoje, tanto nos grandes quanto nos pequenos. Mil passagens bonitas, mas não uma obra. Cerra teu estilo, faz um tecido mais leve que a seda e forte como uma cota de malha. Perdão por estes conselhos, mas eu queria lhe dar tudo que eu desejo pra mim.
[...]
É perder tempo ler críticas. eu faço questão de sustentar uma tese de que não há uma só que seja boa, que isso não serve pra nada a não ser imbecilizar os autores e para embrutecer o público, e, enfim, que se faz crítica quando não se pode fazer arte, assim como quem não pode ser soldado torna-se informante.
[...]
Trabalha cada dia pacientemente um mesmo número de horas. Toma o rumo de uma vida estudiosa e calma; aí você irá saborear primeiro um grande encanto e daí retirará força. Eu tenho também  mania de passar as noites em claro, isto só faz cansar. É preciso desconfiar do que se parece com inspiração e que frequentemente não passa de uma inclinação e de uma exaltação fictícia que nós nos demos voluntariamente e que não surgiu por si própria. Aliás ninguém vive na inspiração.
[...]
Mas é preciso não forçar o passo, como se diz em equitação. É preciso ler, meditar muito, sempre pensar no estilo e escrever o menos que se puder, unicamente para acalmar a irritação da Idéia que exige tomar uma forma e que se resolve em nós até que lhe tenhamos achado uma que seja exata, precisa, adequada a ela. Observa que se chaga a fazer belas coisas à força de paciência e de uma longa energia.
[...]
Modera os arrebatamentos de seu espírito que já lhe fizeram sofrer tanto. A febre esvazia o espírito; a cólera não é força, é um colosso, cujos joelhos vacilam e que fere mais a si próprio do que aos outros.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Anton Tchékhov

Ainda não tenho do mundo uma concepção política, religiosa e filosófica; mudo-a todo mês, e por isso devo limitar-me somente à descrição de como os meus protagonistas amam, casam-se, procriam, morrem e de como falam.
[...]
'Retratar a vida como ela é', dar 'um testemunho sério de nossas vidas' e 'não mentir a si mesmo'.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Thomas Nagel

Uma Breve introdução à Filosofia

O cerne da filosofia reside em certas indagações que a reflexiva mente humana considera naturalmente intrigantes, e a melhor forma de iniciar o estudo da filosofia é pensar sobre elas diretamente. Feito isso, você estará mais bem preparado para apreciar o trabalho de outras pessoas que tentaram resolver os mesmos problemas.
[...]
Como acredito que a melhor forma de aprender filosofia é refletir sobre questões particulares, não direi mais nada sobre sua natureza geral. [...] O objetivo aqui não é fornecer respostas - nem mesmo respostas que eu possa considerar corretas - mas apresentar os problemas de maneira bastante preliminar, para que você possa ocupar-se deles por si só. Antes de aprender muitas teorias filosóficas, é melhor enredar-se nas questões filosóficas a que essas teorias buscam responder. E a melhor forma de fazê-lo é examinar algumas soluções possíveis e ver o que há de errado com elas.